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Entrevista

Entrevista por email concedida a Rafael Mantovani em dezembro de 2021.

Mas algumas coisas que me vêm à cabeça: Cigarettes é uma monobanda? Você é o Trent Reznor do Cigarettes? Se não for, como é? A composição é em conjunto?

Imagino que essa seja uma das respostas que você já encontrou. Mas então, não me importo de explicar. Olhando hoje, depois de todo esse tempo, tantas pessoas que já tocaram comigo, a última vez que eu contei passava de 50, acho que dá pra dizer que é mais um trabalho solo, principalmente em termos de composição. Mas quando comecei eu nem pensava nisso, só queria tocar as músicas que eu fazia.

É claro que cada pessoa que toca comigo acaba deixando algum traço pessoal, alguma singularidade, algo próprio, mas que ainda assim não caracterizaria uma parceria na composição. Friendship, por exemplo, a linha de baixo, que eu acho muito boa, é de autoria exclusiva do Tito, que tocava baixo na época comigo. Nessa época funcionava meio que como uma banda, foram dois, quase três anos com o Tito no baixo e o Wilson na bateria. Assim como o solo de baixo que tem no início e no meio da música é coisa do Gustavo, que produziu e mixou comigo parte do Bingo, até Happiness, depois a gente divergiu de como deveria ser o disco e eu acabei mixando o resto sozinho.

A versão de Friendship do disco não é a mesma do clipe. Por quê? Aliás, você podia falar algumas coisas daquelas imagens?

A versão do clipe tá na segunda, ou terceira, dependendo de como se conta, demo, Brazil’s Sad Samba. Deixa eu explicar isso direito. É que a primeira coisa que eu gravei foi uma fitinha cujo título era Foolish Things and Blah Blah Blah, em 1994, gravei num duplo deck, que nem era meu, com um casiotone, que era meu, um microfone e um violão com cordas de nylon. Isso foi no início de 94. Eu lembro que eu fui na casa de um amigo meu que tinha um aparelho de som com duplo deck. Já respondendo um pouco a próxima pergunta, eu estava em Itaperuna, onde estou agora, que é uma cidade do noroeste fluminense, muito quente, e essa é a característica mais evidente. 

E nesse dia da gravação era janeiro, ou fevereiro, verão, muito calor numa cidade que é normalmente muito quente. e eu tinha que andar uns dois quilõmetrios até chegar a casa desse meu amigo, que nem era alguém do rock, era só alguém que eu conhecia e de quem eu ia usar o duplo deck pra gravar minha primeira demo. Eu não tinha carro, não tinha linha de ônibus que passasse lá, tinha que ir a pé. E eu ia umas duas da tarde, sol a pino, um dia de semana, carregando um violão pendurado nas costas, o casiotone na caixa e uma mochila com o microphone e umas fitas, as pessoas na rua meio que olhavam curiosas pra mim, era meio incômodo, na metade do caminho eu pensei em desistir, mas decidi continuar, chegar na casa do amigo e gravar as coisas que eu tinha pra gravar. Eu ainda não trabalhava e estava em Itaperuna porque era período de férias na faculdade.

Mas agora voltando. Essa fitinha que eu gravei nessas circunstâncias foi a minha primeira demo, foi por causa dela que eu viria a gravar outra fita, a Felícia, com os caras da Pelvs, o Dodô e o Gustavo. Mas isso já é outra história. A versão de Friendship tá na segunda ou terceira demo, dependendo de como se conta, que se chamava Brazil’s Sad Samba. O clipe foi feito antes do ‘bingo’. Acho até que a versão do clipe é melhor do que a que tá no bingo.

As imagens. Talvez seja longo pra explicar o que é aquilo. Mas vou tentar. São imagens de super 8 feitas pela família que era vizinha da casa onde eu morava na infância. Mas como essas imagens foram parar comigo? Pois é.

A maior parte das imagens é aqui de Itaperuna. Mas tem o Cristo no Rio, umas praias que ficam aqui perto. 

Éramos vizinhos quando essas imagens foram feitas. Era um casal com três filhos, que aparecem nas imagens, e eu era amigo deles. Eu também apareço nas imagens segurando um coelho, numa festa de aniversário. O pai deles, já falecido, era advogado e fez concurso pro ministério público, foi ser promotor em Nova Friburgo, pra onde eles se mudaram. Eu ia pra casa deles em Friburgo nas minhas férias escolares, eles também gostavam de música, a gente ouvia muito legião, mas também beatles, led zepellin, smiths, muita coisa, 12, 13 anos de idade. 

Acabei perdendo contato, fui reencontrá-los no Rio, anos depois. Acabei morando com eles, numa república, eu estudava e já trabalhava num jornal. Morando com eles, um dia aparece uma fita vhs com essas imagens em super 8. Eu pensei: é claro que vou fazer um clipe com isso. Mas não falei, não pedi, eles sempre iam pra Friburgo no final de semana e eu ficava lá. Peguei a fita, eu e o Haroldo, amigo de faculdade, que também tinha feito o clipe de lips 2, fomos pra casa do Nilson, Nilson Primitivo, que depois acho que fez um clipe pro Los Hermanos, O Barco, ou algo assim. Passamos uma tarde, noite, madrugada de sábado na casa do Nilson montando esse clipe. Ele tinha uma ilha de edição de corte seco, 1996. Aí a gente foi montando, pegava umas coisas de vhs que a gente tinha, que o Nilson tinha, coisa que tava passando na tv, foi muito legal fazer esse clipe.

E a propósito disso: de onde você é no Rio?

Eu nasci em Alegre, uma cidade também pequena, no Espírito Santo. Vim morar em Itaperuna, já no estado do Rio, quando eu tinha uns três anos. Meu pai era engenheiro agrônomo, ainda é, mas tá aposentado, e fez um concurso pra Emater Rio, uma autarquia estadual. Aí mudamos pra Itaperuna, onde meu pai ia trabalhar. Isso deve ter sido em 76, 77. Aos 17 anos, 1991, fui morar em Niterói. Fui pra fazer faculdade de jornalismo. A faculdade era no Rio, então todo dia eu pegava barca ou atravessava a ponte Rio-Niterói de ônibus. Até que em 1993 eu fui morar no Rio mesmo, em Botafogo, pertinho da faculdade, dava pra ir andando, foi um alívio. Fiquei de 91 a 99 fora de Itaperuna, uma parte em Niterói, menor, e a maior parte no Rio. Tive que voltar pra Itaperuna em condições muito desfavoráveis.

Aquela história da turnê pela Europa que foi cancelada na última hora, eu fiquei muito deprimido. Já tinha saído do jornal onde eu trabalhava, totalmente perdido, acabei tendo que voltar pra Itaperuna.

Mas me recuperei e acabei ficando. Fiz concurso pro Banco do Brasil e trabalhei lá doze anos, pedi demissão em 2016. Hoje tenho muitos gatos e cachorros, o que torna uma mudança pra outra cidade no mínimo mais complicada.

Quem é a moça que canta em Gap? O que é aquela letra?

Helena Malbouisson, uma pessoa muito querida, havia morado anos na França, o pai era Físico, cientista, depois ela também fez Física e acho que é uma pesquisadora hoje em dia. Ela cantava em uma banda que se chamava A Lydie, onde eu tocava guitarra, tem umas músicas no youtube, a gente chegou a gravar uma demo e fizemos alguns shows. A banda tinha ainda o Ricardo, que depois virou baterista da Pelvs, e do Cigarettes também. Naquele show no Mancha que tu foi, ele que tocou bateria nas duas bandas. Além do Augusto Malbouisson, irmão da Helena, que era o mentor do A Lydie e depois criou os Acessórios Essenciais, um projeto muitíssimo interessante

A letra são dois poemas do Baudelaire lidos pela Helena. Na verdade tem uma letra em inglês que é bem simples e curta e a leitura dos poemas por cima do que eu canto. 

Os poemas são La Beauté: https://fleursdumal.org/poem/116 e Hymne à la Beauté: https://fleursdumal.org/poem/202 

A que que você deve o sucesso do disco? “Sucesso” vc entende: ter esgotado, ser um clássico do indie…

Claro, entendo muito bem o que você quer dizer com sucesso. E, de fato, nessa minha vida experimental, aquilo em que eu tive mais sucesso foi na minha expressão musical. Ainda que seja um sucesso bem tímido, ainda assim, claro, acho importante valorizar. 

O ‘bingo’ acho que é um disco que eu vinha imaginando no subconsciente desde o início da minha adolescência.   Tem uma pretensão lírica que acho que acaba tocando algumas pessoas. O ‘bingo’ conta a história de um personagem e cada música é um momento dessa história. Penso também que o disco consegue sintetizar, condensar muito do que havia sido produzido até então daquele tipo de música, uma coisa ao mesmo tempo  difusa, que concentra e expande concomitantemente, uma espécie de cristalização. Talvez aqueles que gostam do disco consigam perceber essas coisas, mesmo em um nível inconsciente.  

Agora a pergunta que eu não me chateio se você ignorar solenemente: você começa o disco com “I can’t stay high” se eu entendo bem. Alguma substância ajudou na composição ou na gravação?

Imagina. Claro que rolava, rolava de tudo em vários momentos. Meus ídolos eram o Velvet Underground.

Falando da música propriamente, o que eu imaginava era alguém antes de fazer um show se lembrando de que seria melhor não ficar louco, segurar a onda pra fazer o show. Enfim

Quantos anos você tinha em 97?

23

Quantas cópias foram feitas do disco?

1000

Ah sim, já ia me esquecendo: em 97, quais eram as maiores influências?

Naquela época, assim como é hoje, se alguém realmente quiser, havia muitas bandas. Tinha um pessoal que tava sempre atrás de novidade. Eu acabava descobrindo muita coisa por meio dessas pessoas. Bandas como Quickspace, aka Quickspace Super Sport, Halo Benders, Spoonfed Hybrid. E tinha as coisas mais óbvias, tipo Pavement, Mercury Rev, Stereolab, Teenage Fanclub, Dinosaur Jr. Mas isso tudo já é anos 90. Nos anos 80, antes de eu ir morar no Rio, 80% do que eu fazia, fora escola, era ouvir música. Gravava discos dos amigos, comprava, quando dava, discos pelo correio, ouvia um programa de rádio chamado Novas Tendências, isso antes ainda da MTv, antes do lado b, na época da bizz, que sem dúvida tinha uma grande influência pra mim. Muito Smiths, JAMC, Joy Division, New Order, Cocteau Twins.

Mas o que eu ouço no Bingo, principalmente, não necessariamente nessa ordem e sem nenhuma escala de grandeza, é Pavement, The Smiths, Yo la tengo, JAMC, Dinosaur Jr. e a sombra do Velvet. Dá pra achar muito mais coisa, mas resumindo é isso.

Queria saber como era a sua relação com a sua cidade naquele momento e, se você não se importar em dizer, saber com o que você trabalha (em uma das coisas que eu li, você fala sobre ganhar a vida).

O poeta Roberto Piva falava que não existe artista experimental sem uma vida experimental. Não que eu seja um artista experimental ao pé da letra, mas talvez, de alguma forma. Sem dúvida, também, com o olhar de hoje, posso dizer que tenho levado uma vida experimental. Sou formado em jornalismo e cheguei a ser repórter de jornal diário por uns quatro anos, talvez cinco, teve um tempo que eu fiz uns freelas também. Mas isso faz muito tempo, entre 94 e 99. Já fiz praticamente de tudo, já consertei computador, montava rede, instalava Linux. Desde que saí do Banco do Brasil vivo de fazer alguns bicos diversos, formalmente desempregado. Até de vez em quando recebo alguma coisa de direito autoral, dá pra comprar cigarro, pagar uma conta de luz, nada substancial, mas todo dinheiro que eu recebo proveniente de música minha me deixa muito feliz. 

Sobre a cidade. não consigo identificar em mim nenhum afeto especial em relação ao lugar onde eu vivo. E na época do ‘bingo’ a relação era de distância, eu ainda morava no Rio.

Ah sim! Outra coisa: eu sou sociólogo, então, eu vou dizer que o indie foi um fenômeno de classe média e classe alta – o que não é nenhum problema… Aí, se você quiser falar sobre como arrumou a primeira guitarra, onde aprendeu inglês (se foi pra fora do país), se teve contato com bandas pra além da MTV…

Claro. E concordo muito contigo. E vou além, o indie é elitista, e, em certa medida, racista. A gente nem se dá conta, mas é uma coisa quase que exclusivamente branca. Não é bem que seja exatamente racista, mas quando se olha de fora é possível ter essa impressão.

Agora respondendo, minha primeira guitarra ganhei de natal, quando eu tinha 11, 12 anos. Era uma Magnus, uma marca muito vagabunda. Antes eu tinha um violão giannini, que foi o instrumento onde eu aprendi a tocar, se é que aprendi. Eu tinha um amplificador improvisado com uma caixa de som dessas de carro de som e uma espécie de capacitor que ligava nessa caixa e plugava a guitarra nesse aparelho. E também um pedal overdrive e um wah-wah, tudo nacional, bem precário, mas eu adorava. 

Sou autodidata no inglês. Nunca saí do país. 

Contato com bandas você diz bandas brasileiras ou bandas em geral, se eu conhecia bandas mais desconhecidas?

Bom, uma ou outra, a resposta é sim. A gente sempre encontrava pessoal de outras bandas, até que a gente viajava bastante, pras características da banda, em São Paulo a gente ia direto, vários shows, Nordeste, Brasília, Paraná, era como dava pra ser, meio perrengue, mas rolava umas coisas legais. E quanto ao que pode ser a outra questão, de conhecer bandas além do que rolava na mtv, sim também. Havia uma grande circulação de informação entre esse pessoal que se conhecia pelo som, e era uma coisa extremamente filtrada, muito específica, tipo o post rock da kranky records. 

Acho que você meio que perguntou isso também. Nunca fui rico, minha origem é classe C, por uns cinco anos quando eu fui gerente de contas no bb, talvez eu tenha chegado a classe B. Acabei abrindo mão de ser gerente, entreguei a função comissionada porque era uma pressão absurda e voltei para o cargo inicial, daí a três anos eu pedi demissão. Mais dinheiro nem sempre quer dizer que é melhor. Sou classe média, o que na verdade quer dizer pobre.

UPDATE (Após as primeiras respostas, recebi outro email pedindo um complemento a algumas delas)

Minha nossa, as imagens não eram suas e você não pediu!! hahahaha! eu te mataria.

Mas você não diz: a família não soube nem depois, sabe hoje? Disse alguma coisa?

Pois é, engraçado mesmo. O que eu fiz foi mesmo um absurdo. Totalmente reprovável. Acho que eu cheguei a pensar na época, antes de fazer o clipe, vai que eu peço e eles não concordam? Aí não teríamos o clipe. Pensei: ah, vou fazer, quase ninguém vai ver isso mesmo. Acredito que eles tenham ficado sabendo, mas não sei ao certo. No final daquele ano, 1996, a república acabou, eles se mudaram, eu voltei a morar sozinho, cheguei a ter contato com eles poucas vezes depois disso, mas nunca tocamos no assunto, nem eles, nem eu. No final acaba que é uma coisa vista mesmo por muito pouca gente. Da mesma forma que a banda, acho que duas mil, três no máximo, conhecem Cigarettes no Brasil. Desse total, acho que quinhentas pessoas conhecem de verdade e gostam.

Quem é esse Tito do baixo de Friendship? (não esqueça que eu não tenho o cd…)

Quando eu comecei a fazer shows as formações eram sempre com o pessoal da Pelvs. Com exceção do primeiro show, maio de 1994, que foi com dois caras aqui de Itaperuna. Em 95 eu decidi montar uma banda. O Tito era colega de faculdade e conhecido da noite, gostava de algumas das mesmas coisas, chamei ele pra tocar. Ele chamou o Wilson, Wilson Power. Os dois são djs conhecidos na noite rock do Rio, até hoje. Eles tocaram na Brazil’s Sad Samba e no Bingo, fizemos um bocado de shows. Mas logo depois que saiu o Bingo, em 98, começou a rolar mais shows, nem sempre eles podiam, aí fui chamando outras pessoas.

Você cita o Halo Benders e o Beat Happening fica de fora. Eu sempre tive pra mim que o Halo Benders era a segunda banda do Calvin Johnson…

 Beat Happening é sensacional, gosto muito, mas acho que não cheguei a assimilar como uma influência. Gosto mais de Halo Benders. O primeiro disco, God Don’t Make No Junk, não tem uma música mais ou menos, é tudo incrível, acho impressionante. Os outros dois são quase assim também, a meu ver.

Aliás, e Guided By Voices?

GBV eu conheci por volta de 95, gosto muito de alguns discos, Alien Lanes, Under the bushes…, Bee thousand, eles lançaram muita coisa. Tem uma entrevista minha no youtube que eu falo um pouco sobre isso, a estética lo-fi, etc.

Aliás, você mencionou a capa (e eu esqueci de perguntar): ela significa alguma coisa?

Significado intencional, proposital, deliberado, planejado com o intuito de passar uma mensagem, não.

MAS tudo diz alguma coisa, né?

Quem fez essa capa foi o Fábio Leopoldino, vocalista, guitarrista, fundador e compositor do Second Come e do Stellar, que infelizmente nos deixou em 2009 com apenas 46 anos. Eu já sou mais velho, já vivi mais do que ele. É curioso que eu me lembro agora de aos 16 anos, pouco antes de eu ir morar em Niterói, onde o Fábio morava aliás, eu me correspondi com ele, por carta, mandei um fanzine que eu fazia sobre o The Smiths. Ele me respondeu e mandou uma espécie de fanzine também, sobre o Second Come, tinha um release, fotos, disse que tava sem fitas da banda senão teria me mandado. Mas eu já tinha ouvido. Aí no texto falava que ele tinha 27 anos. E eu ficava fazendo contas pra ver quantos anos eu ainda tinha até conseguir montar uma banda tipo aquela do Fábio.

A segunda voz em Blues no Bingo é dele.

Sobre a capa ele ouviu algumas músicas, já tinha visto alguns shows nossos também, ele conhecia desde a primeira fita na verdade. Me disse que tinha achado a fita fantástica. Eu só falei como queria que aparecesse o nome da banda, onde, e só. O resto foi tudo ele que criou. Ele era artista plástico também. Uma pessoa muito legal, muito talentosa, de quem sinto falta. Nem tinha contato frequente com ele, mas de vez em quando a gente se falava.