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ENTREVISTA: Kato David Hopkins (Public Bath Press)

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 11/09/2016
Destroy All Music ARQUIVOS
Por Vinícius Damazio

No dia 29 de novembro de 1980, um assassinato na província de Kanagawa, ao sul de Tóquio, chocou o Japão. Um adolescente, tipicamente suburbano em todos os sentidos, espancou seus pais até a morte com um taco de beisebol de alumínio. A mídia, os vizinhos e o próprio garoto não sabiam explicar a motivação por trás do crime. O caso marcou época, abriu os olhos da sociedade para o crescimento exponencial dos índices de delinquência juvenil e o país começou a descobrir que muitos dos seus jovens se sentiam completamente alienados.

Foi nesse clima de embate com o respeito pela autoridade enraizado na tradição cultural do Japão que a música independente local floresceu – do rock experimental ao psicodélico até o punk e o noise –, como conta o professor Kato David Hopkins em seu livro Dokkiri! Japanese Indies Music, 1976-1989: A History and Guide (Public Bath Press, 2016).

A violência escolar, uma tendência alarmante, atingia um novo nível no último dia de aula, quando não havia mais chance de punição: a destruição de carteiras e portas se voltava contra os professores, que eram atacados por grupos de alunos. A polícia passou a ser presença garantida nas cerimônias de formatura e as escolas reagiram com uma política de tolerância zero, forçando regras arcanas e expulsões em série. As normas especificavam em grandes detalhes a aparência dos uniformes escolares, cortes de cabelo, mochilas, sapatos e até cadarços, além dos códigos de comportamento. Com a pressão colocada nos estudantes, já desgastados por um sistema rigoroso de provas, muitos simplesmente desistiam e planejavam como se vingar.

O mainstream não demorou a cooptar a rebeldia desses moleques e transformá-la em um lucrativo nicho de mercado. Na TV, a novela de mais sucesso era San-nen B-gumi Kinpachi-sensei, a história de um professor jovem que conseguia converter bōsōzokus e tsupparis em bons garotos. A indústria cinematográfica investiu em filmes para adolescentes como BE-BOP-HIGHSCHOOL e as gravadoras ensaiaram um renascimento aguado do rockabilly.

No underground, o zine Rock Magazine, criado pelo idiossincrático cantor pop Agi Yuzuru, dava notícias das bandas progressivas inglesas, do krautrock alemão e da formação da cena punk em Nova Iorque. Logo, logo, os moleques começaram a criar seus próprios zines e bandas, que também abraçavam o legado visceral de heróis locais como Mikami Kan, Flower Travellin’ Band, Les Rallizes Dénudes e Abe Kaoru.

Dokkiri! Japanese Indies Music, 1976-1989: A History and Guide é um livro que preenche uma lacuna. E a preenche com histórias que surpreendem, divertem e que, sobretudo, nunca foram contadas com esse detalhamento em inglês. Por quê? Porque David era o único gringo assistindo o Hijōkaidan quebrar em pedaços o palco do Eggplant, de Osaka, toda noite. INU, Ultrabide, Friction, Gaseneta, Phew, Haino Keiji, Shōnen Knife, S.O.B., Incapacitants, Merzbow, High Rise, Asylum, After Dinner, Boredoms e centenas de outras bandas são abordadas ao longo das 300 páginas do livro que você pode comprar direto do autor.

“Meus filhos já cresceram. Achei que era a hora de alguém escrever sobre a história da cena independente japonesa, já que não há nada legal escrito em inglês”, ele explica no início do papo no seu horário de almoço no trabalho. O resto você acompanha abaixo. Ao fim da matéria há uma seleção de alguns dos meus discos favoritos dos artistas citados no livro e outros contemporâneos do período.

Urina, suor e barulho: Hijōkaidan, em todo o seu esplendor, ao vivo no Eggplant, em Osaka

Considerando todo seu conhecimento em música japonesa e o comentário de Ian MacKaye sobre uma turnê do Fugazi no Japão que aparece no início do livro, quando começou o seu envolvimento com a cena independente local?

Sou um velho colecionador de discos que veio para o Japão em 1979, quando ainda garoto. Eu tinha um trabalho que pagava bem o bastante para que comprasse qualquer disco que quisesse e gastava meu tempo esquadrinhando todas as lojas de discos em Osaka e Quioto. Em Quioto, havia um lugar chamado Jujiya que contava com uma prateleira exclusiva de música independente japonesa. O gerente, Hirakawa Shin, sempre dava dicas de que discos comprar.

Comecei a frequentar shows por volta de 1980 ou 1981. Ainda não sabia ler bem em japonês, então me informar era um problema. Os cartazes nas lojas de discos eram a única maneira de saber desses eventos e acabei não conhecendo as primeiras casas de shows da cena independente. Simplesmente não sabia que existiam.

Pelo meio dos anos 80, comecei a ler mais revistas de música e frequentar os lugares da cena, especialmente a Eggplant, em Osaka. Foi quando conheci os músicos. Pelo fim da década, fundei, com uma parceira nos Estados Unidos, a Public Bath Records, para lançar discos independentes locais no exterior. Ela adoeceu e teve de sair, então o selo acabou. Por volta dessa época, ajudei o Kodama Kenji, da Time Bomb Records, quando ele começou a organizar shows. Fui intérprete de um monte de bandas no Japão. O Fugazi veio duas vezes e, vou te falar, alimentar vegetarianos no Japão não é fácil.

Meus filhos nasceram no meio dos anos 90 e cuidar deles tomava muito do meu tempo, com razão, mas ainda continuava a comprar discos, claro.

Diversos estudos sobre a música japonesa surgiram recentemente (o livro de David Novak sobre noise e Japrocksampler são exemplos óbvios). O que te fez escrever Dokkiri!?

Já com os meus filhos crescidos, pensei que deveria escrever em inglês sobre a cena independente japonesa, já que não há nenhuma boa fonte. Japrocksampler tem mil erros e ignora as bandas verdadeiramente independentes. Além disso, alguém acredita que a montagem de Hair em Tóquio foi um evento crucial? Japanoise é um livro muito bom, mas provavelmente acadêmico demais para quem procura algo parecido com um guia. Tentei mirar entre as duas coisas, ou seja, algo sério o bastante para satisfazer os acadêmicos, mas com uma abordagem de fã.

Originalmente, meu foco estava na Região de Kansai (Osaka e Quioto), mas meus amigos estrangeiros acharam que isso seria um suicídio comercial, então passei mais alguns anos estudando sobre a cena original de Tóquio (que também não conheci além dos discos). Críticos japoneses do livro percebem minha inclinação imediatamente.

Sem estragar muito da graça do livro, gostaria que você explicasse o zeitgeist durante os anos abrangidos, especialmente a forma como os japoneses percebem a cultura americana e as diferenças entre Tóquio, Osaka e Quioto.

O zeitgeist se transformou ao longo do tempo, claro, mas, basicamente, o Japão perdeu muita da sua independência em uma corrida doentia para alcançar os Estados Unidos (e somente os Estados Unidos realmente importavam para eles). Isso criou problemas sociais e psicológicos, já que eles não são, afinal de contas, americanos, somente pessoas que têm as mesmas coisas que os americanos têm. Um dos principais temas desse livro é a luta em ser, ao mesmo tempo, japonês e roqueiro ou músico independente (coisas cujas definições vêm de fora do Japão). Em meados dos anos 80, o Japão era desleixadamente rico, e a extravagância e o desperdício dominavam o mainstream, mas não o underground. O underground olhava principalmente para a Inglaterra (às vezes para toda a Europa) em busca de inspiração, talvez porque o modelo americano fosse percebido como próximo demais do mainstream.

Osaka, Quioto e Tóquio possuem identidades bastante diferentes. Osaka é uma capital comercial, de ética proletária. Quioto é uma capital cultural tradicional, mais ou menos intelectualizada. Já Tóquio é uma capital política (e hoje também econômica), ímã para a migração interna. Defendo que as pessoas de Tóquio tendem a ter raízes superficiais e que são extremamente conformistas. No entanto, a mídia também está centralizada em Tóquio, então a cultura dali domina todo o Japão.

O livro começa com Agi Yuzuru, um indivíduo de caráter idiossincrático que parece ser uma espécie de John Peel japonês, já que sua influência foi decisiva para que toda uma geração de moleques se interessasse por música estranha. Como você julga sua importância?

Agi Yuzuru é meio babaca e bem difícil de se lidar, mas não egoísta. Ele tem uma agenda de coisas favoritas que está sempre forçando, mesmo ainda hoje, em que está mais envolvido com a cena de dança de vanguarda. Ele usou o bocadinho de celebridade que tinha para divulgar, com êxito, um monte de coisas do underground. Havia muitas pessoas que o odiavam. Ele não chegou a ser tão influente quanto John Peel, porque sua plataforma sempre foi a mídia impressa. No entanto, a Rock Magazine foi incrivelmente importante. Inspirou outros zines, músicos, organizadores, casas de shows, enfim, todo mundo. Mesmo que você não gostasse, acabava se inspirando naquilo.

Acidentes de percurso: Agi vai para o Reino Unido em 1976, mas sai cedo demais do Lyceum e perde os Sex Pistols. Em Nova Iorque, visita o CBGB’s e afirma que “a única salvação para o rock inglês é ser como o punk nova-iorquino”. Apesar do punk, Sparks, Eno e prog ainda são pauta.

Diferentemente das bandas ocidentais, o post-punk japonês parece não ter rompido com o passado para criar o presente, ou seja, os integrantes das bandas não jogaram fora seus discos de prog e art rock quando descobriram o punk. É por isso que esses grupos soam tão diferentes dos homólogos americanos e ingleses?

Sim, essa é uma diferença crucial. A explosão independente não foi bem uma revolução no Japão. Japoneses gostam de colecionar e completar. O que acontece quando você completa uma coleção? Começa outra. É importante notar que os jovens que procuravam por algo diferente naqueles anos iniciais do punk também ouviam muito free jazz e música de vanguarda contemporânea. Até onde sei, isso não é muito comum em países ocidentais, com algumas exceções. O free jazz e a música de vanguarda também questionam os valores do mainstream (em um senso maior do que só o rock ou o pop), com maneiras incomuns ou recusa total de noções técnicas, e a adoção do som em oposição a música.

Além disso, enquanto a cultura japonesa em geral está bastante confortável com uma auto-imagem de uma nação de imitadores, artistas não querem ser pensados dessa forma, então soar diferente é intencionalmente essencial.

O disco No New York parece ter tido muito mais impacto na cena underground japonesa do que em todos os outros lugares do mundo. Por que esse disco foi tão influente?

No New York foi produzido por Brian Eno e Eno era Deus para a Rock Magazine de Agi, o que já foi um bom começo. Acho que o Contortions era o que todo mundo gostava. Eles soavam únicos, amadores mas convincentes. Além disso, o disco foi lançado muito rapidamente por uma gravadora grande no Japão, assim todo mundo em qualquer lugar poderia comprar, ao contrário dos discos independentes que apareciam apenas em lojas de importados nas grandes cidades.

Expatriados: Chiko Hige e Reck, ambos ex-○□ e 3/3, vão conferir a Nova Iorque de Agi com os próprios olhos e levam a amiga Mori Ikue à tiracolo. Lá eles integram, respectivamente, os Contortions, o Teenage Jesus and the Jerks (na foto) e o DNA, expoentes da cena no wave.

Há uma tradição de performances violentas no palco que vem desde o início do punk e do noise no Japão. The Stalin, Hanatarash, G.I.S.M., Gaseneta e várias outras bandas incitavam tumultos sérios ou atacavam diretamente a audiência. Como essa tendência começou?

O Hanatarash realmente era perigoso. Atiravam coisas, quebravam vidros e usavam ferramentas elétricas. O Stalin jogava carne crua. Não tenho muita certeza sobre o G.I.S.M [Nota: Sakevi, vocalista do G.I.S.M., ganhou fama pelo comportamento imprevisível, incluindo a vez em que cantou lançando labaredas no público com um lança-chamas caseiro]. O Gaseneta e o Hijōkaidan direcionavam toda a violência para eles próprios e são bons exemplos de bandas que foram criadas por fãs de free jazz. Sobre a violência, provavelmente era uma questão de transgressão, acho. Talvez uma origem possível seja o butō.

Siga Bem Caminhoneiro: O lendário show em que Yamantaka Eye, vocalista do Hanatarash, invadiu o palco com um trator. De acordo com ele, a proposta era fazer o público passar pela “verdadeira experiência da guerra”. Confira mais fotos do show feitas por Gin Satoh aqui.

Um detalhe que me chamou a atenção no livro é a quantidade de vezes que você desqualifica uma banda por conseguir um contrato com uma grande gravadora, especialmente quando ela passa a atrair fãs de visual kei. O quão difícil era para um grupo manter a qualidade em um gravadora major naquela época?

As grandes gravadoras japonesas são malignas. A mídia mainstream japonesa é maligna. Eles desfrutaram do controle da informação por tanto tempo que sua principal motivação tornou-se a perpetuação do próprio poder e apenas isso. Trabalharam constantemente para reprimir e suprimir as vozes independentes em todas as artes. Era bem sabido que se você tomasse o dinheiro das majors, teria que fazê-los felizes com o resultado. Não era censura, mas uma autocensura. Talvez fosse possível para uma banda manter a qualidade em uma grande gravadora, e há uma ou duas bandas excepcionais que conseguiram, mas artistas independentes que entraram para majors não conseguiram manter a credibilidade das ruas. Era dado como certo que um cara de terno tinha “consertado” suas músicas.

Você realmente odeia todas as bandas de visual kei que já existiram (risos)? Nenhum amor para o Vanishing Vision do X, o primeiro disco do Luna Sea ou o Close Dance do Zi:Kill?

Eu sou um cara do tipo de Osaka (na verdade, vim de um background e lugar de classe trabalhadora, Pittsburgh) e concordo com o pessoal de Kansai que vestir roupas com babados e usar uma tonelada de maquiagem é pura estupidez. Se você tem que se pintar para parecer atraente, então provavelmente não é bom o suficiente por si só. Às vezes, ouço alguma música que gosto e descubro que é uma banda de visual kei, mas, a priori, não estou interessado nessa abordagem. É algo bem próprio de Tóquio, na verdade. Talvez algumas bandas do interior também.

Quais seriam os cinco discos fundamentais daqueles citados no livro que você escolheria?

Encerro o livro com o disco Ningen wa Kane no Tame ni Shineru Ka do Noizunzuri porque essa foi a conclusão mais bem-sucedida da questão de ser japonês e “rock”, embora possa não ser exatamente rock… Esse é o número um. Na minha idade já avançada, o álbum de punk old school que ouço mais é o único lançado pelo Masturbation. Eles não tocam rápido demais para mim! Acho que existem algumas compilações americanas dos primeiros discos de oito polegadas do Shōnen Knife, que são perfeitos pela sensibilidade pop e a atitute cala-a-boca-e-faz de Kansai. Outra escolha de velho seria qualquer coisa da Suyama Kumiko, mas seus leitores jovens talvez não vejam o charme. Quando quero bater cabeça, os primeiros discos do Zenigeva são o que há de mais pesado. Se tratando noise de verdade, devo dizer que gosto mais do Incapacitants, especialmente uma compilação de cassetes do início da carreira que foi lançada na Holanda. São cinco? Algo do início do Solmania, talvez? Não consigo fechar uma lista desse jeito. Esses não estão em nenhuma ordem, e muitos outros estão passando pela minha cabeça que poderiam facilmente entrar na lista.

Sooner Or Later: o vocalista do Gaseneta Yamazaki Harumi, Watanabe Miho e David.

O que podemos esperar da Public Bath Press no futuro? Há algo no forno?

O próximo lançamento da Public Bath Press será Gaseneta Wasteland, uma ruminação autobiográfica sobre a banda Gaseneta escrita pelo seu guitarrista, Osato Toshiharu. No fim da vida, ele foi professor de literatura francesa, então a forma e conteúdo foram conscientemente calculados. Acho que terá um CD de material ao vivo encartado. “Gaseneta” em inglês significa algo como “bullshit” [Nota: “Gaseneta” era uma gíria usada por jornalistas e policiais para informações falsas]. Gosto muito do livro.

Estou trabalhando na autobiografia de Mikami Kan, cantor underground de acid folk que começou sua carreira no fim dos anos 60 e continua muito bem até hoje. Ele é receptivo à ideia de também incluirmos um CD, mas alguns dos seus primeiros trabalhos foram lançados por gravadoras majors e provavelmente não licenciariam de graça.

Também estou trabalhando com alguns tradutores mais jovens em um ensaio acadêmico chamado Fabricating “the Soul of Japan”. Enka and Post-war Japanese Popular Music, sobre a história da música pop japonesa do pós-guerra, e espero terminá-lo até o fim do ano. Quero lançá-lo como livro didático para aulas de cultura japonesa contemporânea.

Tenho um acordo com Yamamoto Seiichi (Boredoms, Omoide Hatoba etc) para traduzir seu livro de “ensaios” (embora grande parte dos textos não seja facilmente classificável) chamado Ginga. Talvez também tente escrever sobre o pop japonês de antes e durante a Guerra. Já publiquei um par de trabalhos acadêmicos sobre o assunto. Enquanto ouvia as músicas de Mikami para autobiografia, pensei também que há uma necessidade real para um livro que cubra o folk e folk rock japonês do fim dos anos 60 e início dos 70. Não encontrei nada muito bom em japonês, então talvez tenha que estudar e fazer esse também.

Vários ‎– (1979) Tokyo Rockers (CBS/Sony, 1979): De olho no barulho feito pelas bandas de Tóquio, a CBS Sony gravou um registro ao vivo de um dos eventos dos Tokyo Rockers e lançou o primeiro disco punk em uma gravadora major. Todas as bandas registradas no dia – Friction, Lizard, Mirrors, Mr. Kite e S-Ken – tiveram seus próprios discos independentes, mas a qualidade do som aqui impressiona. A gravadora rival Victor tentou fazer o mesmo com Tokyo New Wave ’79, mas o cast não era tão interessante (vale buscar pela apresentação do 8 ½).

Vários ‎– (1980) Dokkiri Record (Hitsuyō Record, 1980): Para contornar as dificuldades financeiras, as bandas da cena de Kansai se juntaram para gravar Dokkiri (onomatopeia para choque ou susto). Liderado por Machida Machizō, vocalista do INU, o projeto apresenta os grupos Ultra Bide, Alcohol 42%, Henshin Kirin, Chinese Club e o próprio INU. Puro DIY e obrigatório.

Gunjogacrayon & Totsuzen DanballPass Live (Pass Records, 1980): O interesse das gravadoras em capitalizar com a cena undeground durou pouco. Para ocupar esse vácuo, a Pass Records, um selo independente nos moldes ocidentais, ou seja, com distribuição em parceria com as majors, tocou o barco. Pass Live, uma parceria entre o Gunjocrayon e o Totsuzen Danball é um dos exemplares mais crus e experimentais do catálogo da Pass. Registro de um show do Totsuzen Danball com o Fred Firth, o cassete Live At Loft Shinjuku Tokyo Japan 23 July ’81 (Floor, 1982) também é altamente indicado pelo valor histórico, apesar da qualidade de gravação horrível.

Friction ‎– Friction (Pass Records, 1980), EDPS ‎– Blue Sphinx (Japan Record, 1983): Reck e Chiko Hige voltaram das suas férias em Nova Iorque com a cabeça cheia de ideias e montaram o Friction. A árvore genealógica que liga o Friction aos Contortions, Teenage Jesus, ○△□ e 3/3 fica clara ao longo do disco. Em registros posteriores, a banda ganhou identidade própria e virou uma fera completamente diferente. ’79 Live (Pass Records, 1980) também é um bom registro dessa fase inicial. Eventualmente, o guitarrista Tsunematsu Masatoshi começou a sua própria banda, E・D・P・S. Blue Sphinx é o meu álbum favorito do grupo.

Renzoku Shasatsuma 1978.3.26 Shibuya Yaneura (Bloody Butterfly, 2001), Gaseneta Sooner or Later (P.S.F. Records, 1991), SS – Live! (Alchemy Records, 1990), Ultra Bide ‎– The Original Ultra Bide (Alchemy Records, 1984), INU ‎– Ushiwakamaru name tottarado tsuitaru zo! (Alchemy Records, 1984), Aunt Sally ‎– Live 1978-1979 (P-Vine Records, 2001): Em retrospecto, parece que toda vez que uma banda de Kansai finalmente conseguia uma chance de gravar um disco, o tino comercial dos diretores de gravadora ou a influência de um produtor (invariavelmente, Sakamoto Ryuichi) corrompiam o som. Registros ao vivo lançados postumamente costumam ser um retrato melhor do que esses álbuns de estúdio. O Renzoku Shasatsuma soava como uma versão glam do padrão de jam band estabelecido pelo Les Rallizes Dénudes. O Gaseneta e o SS foram as primeiras bandas punk verdadeiras da cena local. A mais experimental da leva, o Ultrabide nasceu dos ciclos de improviso no café Drugstore, enquanto o INU era pura provocação calcada em grooves dos Stooges. Com Phew à frente dos vocais, o Aunt Sally é um bom exemplo da intrusão de valores progressivos na estética punk – o único disco de estúdio do grupo, Aunt Sally (Vanity Records, 1979), também merece atenção.

8 ½ – 8 ½ (Chop Records, 1979): O 8½ estava no meio desse movimento, mas parecia totalmente perdido. Diferente da pose de bad boy dos Tokyo Rockers ou das bandas de Kansai, Kubota Shingo, Sensui Toshiro e Ueno Kōji não pareciam e não soavam como punks, como ficou claro no primeiro e único lançamento do grupo. O álbum autointitulado trazia de tudo: rock de arena, synthpop, new wave, jazz, hinos patrióticos deformados, noise e rock de vanguarda. Se você tem boa memória e um pouco de intimidade com o cenário musical japonês, deve ter reconhecido os nomes. Ueno e Sensui gravitaram em torno da genial Togawa Jun, tanto em sua carreira solo quanto no Yapoos e Guernica.

Hikashu – Hikashu (Eastworld, 1980): Parte da febre new wave e synthpop (os japoneses costumam chamar de technopop), o Hikashu era um irmão salaryman da Yellow Magic Orchestra, ou seja, toneladas de sintetizadores, produção gélida, ternos coloridos e muita influência do Kraftwerk.

Phew – Phew (Pass Records, 1981): A estreia solo da vocalista do Aunt Sally foi puro art rock. Holger Czukay e Jaki Liebezeit, ambos do Can, ditam o clima atmosférico do disco. A produção foi de Conny Plank em Cologne, na Alemanha. Mais krautrock impossível.

Non Band – Non Band (Wechselbalg Syndicate, 1982): Liderada pela baixista do grupo Maria 023, Non, a formação da Non Band contava com baixo, violino e baterista. As composições eram mais amarradas do que o habitual nas bandas post-punk nipônicas, o que faz com que o disco soe muito bem ainda hoje. Um dos melhores lançamentos do subselo da Telegram Records, Wechselbalg Syndicate.

Auto-Mod ‎– Horobi yuku jidai e no Requiem (Wechselbalg Syndicate, 1983): Também parte Telegram, o Auto-Mod representava o mal encarnado para David: uma banda de Tóquio com toneladas de maquiagem praticando um som herdeiro do “positive punk” inglês, ou seja, um embrião do que veio a ser o visual kei. No entanto, se você gosta de deathrock e new wave, o Auto-Mod é para o seu bico. O álbum Violetter BallMurasakiiro no budōkai (Sixty Records, 1985) do Der-Zibet e os primeiros lançamentos do Buck-Tick devem muito a ele.

The Stalin – Stop Jap (Climax Records, 1982): Para David, o Stalin estava tentando vender o hardcore para as massas. Para mim, Stop Jap é o melhor disco de punk rock já gravado na história. Endō Michirō, um veterano dos protestos contra a Guerra do Vietnã, estava atento ao que rolava no underground e resolveu montar sua própria banda. Dada à experiência de seus integrantes, o Stalin tinha som maduro e letras mais consistentes escritas majoritariamente em japonês. Endō é Deus. Ouça “Romantist”  e comprove. お前は!

Tam – Vol. 1 (ADK Records, 1983), G-Zet – G-Zet (ADK Records, 1984), Aburadako Aburadako (Japan Record, 1985): Após uma passagem como guitarrista do Stalin, Tam montou a sua própria gravadora, a ADK Records, lançando discos das suas empreitadas, como o G-Zet, e de outras bandas da cena. O G-Zet tinha o hábito de surrupiar riffs alheios, de “Children of the Grave” do Black Sabbath à “Ace of Spades” do Motörhead, e transformá-los em petardos furiosos de hardcore. O disco solo Vol.1 não passa de versões instrumentais de músicas das bandas anteriores de Tam, mas tudo é tão bem gravado e tocado que vale a audição. Entre as bandas que não contavam com o patrão em sua formação, o Aburadako é a mais curiosa. No entanto, a mistura de grindcore, math rock e senso de humor bizarro só deu liga na estreia major em 1985.

The Comes ‎– No Side (Dogma Records, 1983), Gastunk – Dead Song (Dogma Records, 1984), G.I.S.M. – Detestation (Dogma Records, 1983), R.U.G. – Deathly Fighter (Dogma Records, 1984): A Dogma Records, selo associado a revista Doll, era a casa das bandas que injetavam guitarras melódicas e bumbos duplos de metal no hardcore. Hoje venerados no Ocidente, o The Comes e o Gastunk estrearam na gravadora. O meu lançamento favorito do catálogo é Detestation do G.I.S.M., uma mistura de d-beat, metal e punk elevada ao máximo da crueza. A mixagem é tão tosca que chega a ser chocante na primeira audição. Já as letras são um caso à parte (“Endless Blockades for the Pussyfooter” é o mais perto de Dylan que o hardcore pode chegar). O guitarrista Randy Uchida – pense em um Randy Rhoads usando os trajes do Mötley Crüe em Shout at the Devil – também lançou um sete polegadas de metal puro com seu próprio Randy Uchida Group.

Kikeiji ‎– Hello-Good Bye (Ducasse, 1985), Nikudan ‎– Proletarian Sports (Independente, 1984), Kuro – Who The Helpless (Blue Jug Records, 1984), Gauze ‎– Equalizing Distort (Selfish Records, 1986), Bitousha – Hiromi’s Party (ACS Records, 1984), Death Side – Wasted Dreams (Selfish Records, 1989): O Japão foi o país-sede do hardcore nos anos 80 e até hoje são lançados bootlegs dos discos da época no Ocidente. Dessa seleção, Wasted Dreams e Who The Helpless são os meus favoritos e os mais influentes. Ainda aparecem centenas de bandas reproduzindo a mistura de hardcore e metal criada pelo Death Side e Kuro.

Haino Keiji Watashi Dake? (Pinakotheca, 1981): Devido a infinidade de projetos e colaborações que tinha feito, Haino já era algo como uma lenda quando lançou seu primeiro disco solo, em 1981, pela Pinakotheca. O tom livre e anticomercial do álbum é um bom exemplo da estética do selo.

Hijōkaidan – ‎Zōroku no kibyō (Unbalance, 1982): Coletânea montada a partir de shows entre 1980 e 1981, Zōroku no kibyō reúne um pouco de cada faceta do Hijōkaidan. Há o lado espacial, com toques de Faust e Peter Brötzmann, e o ruído puro dos lançamentos posteriores.

Incapacitants ‎– Eternal Paralysis (Pariah Tapes, 1984), Hanatarash3: William Bennett Has No Dick (RRRecords, 1989), Merzbow – Battōtai With Memorial Gadgets (RRRecords, 1986), Solmania – The Basement Tapes and Discs (Youth, 2013):  O tumulto causado pelo Hijōkaidan abriu as porteiras para uma infinidade de moleques interessados em fazer o máximo de barulho possível criarem seus próprios projetos. O cassete Eternal Paralysis, do Incapacitants, é um embrião de tudo o que foi feito posteriormente na cena harsh noise.

High Rise – II (P.S.F. Records, 1986): “Cybernetic wah abuse and non-stop intensity are their trademarks; complete tonal domination their goal”, assim se classificava o High Rise. Eles rezavam no altar do Gaseneta e do Les Rallizes Dénudes, criando um som com partes iguais de punk e psicodelia. Um clássico da P.S.F. Records.

Phaidia – In The Dark (City Rockers Records, 1985), Asylum ‎– Crystal Days (Transrecords, 1987), Dead End – Dead Line (Night Gallery, NIGHT 009): Combinando influências metaleiras, roupas extravagantes e apelo pop, bandas como Phaidia, Asylum e Dead End abriram caminho para a cena visual. Ouça e compare esses discos com os primeiros lançamentos independentes do X, Ladies Room, Color e Kamaitachi.

Boredoms – Soul Discharge (Selfish Records, 1989), Ruins – Ruins III (Transrecords, 1988), YBO² – Taiyou no ouji (Transrecords, 1986): A história do Boredoms passa por tantos grupos que é até difícil decidir quais discos indicar. Hantarash, Hasty Snail Baby, Acid Maki and Combi and Zombi, Love Love Platonics, Geva2, Mara, Nankai Hawkwind e Omoide Hatoba, entre outros, tiveram algum relação com o grupo. Resumindo todo esse legado, Soul Discharge soa como um bando de chimpanzés soltos dentro de um estúdio. Grupos contemporâneos, como o Ruins e o YBO² (ambos com Tatsuya Yoshida na formação), faziam música tão incomum quanto, mas operando em formatos menos expressionistas.


Entrevista originalmente publicada no extinto blog Destroy All Music, que reunia textos de Vinícius Damazio e fotografias de Victor Damazio, parte da plataforma Catárticos. O autor é o único responsável pelo conteúdo. Qualquer reprodução deve citá-lo como fonte.