Nesse instante, vivo a ressaca de um amor mal sucedido. E é tão aborrecido. Esse mal-estar difuso, só quero que passe logo. É mais e menos que a tristeza. Nem triste estou. Só quero que passe logo.
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Deve haver um motivo para que o disco esteja sendo remixado. Pessoas ainda se lembram dele, e me dizem que ouvem, até hoje, com a mixagem original. Mesmo porque nunca houve outra, ou não havia. A sonoridade abafada acabou por ser caracterizada como um “charme lo-fi”.
A primeira mixagem foi um processo atribulado.
Assim como todo o resto.
Os donos do Freezer, o estúdio onde gravamos, eram Dodô e Gustavo. Ambos meus amigos, Dodô ainda era colega de faculdade.
Gustavo seria também o produtor do disco da mesma forma que nas “demos”. Mas não foi bem isso que aconteceu.
Nessa época, o núcleo duro da Pelvs, Dodô e Gustavo, estavam motivados por algum tipo de deformação ideológica. Depois do primeiro disco, Peter Greenaway’s Surf, repleto de ruídos e feedback, entraram numas de guitarras limpas, violões, vocal na frente, uma espécie de ressaca, olha aí, do barulho.
E era o meu primeiro disco. Eu queria muita guitarra na frente, microfonia, vocal soterrado, daquele jeito.
O conflito era inevitável. E assim foi.
As gravações seguiram comigo querendo montanhas de guitarras distorcidas e o Gustavo buscando uma abordagem mais clean.
Apesar das divergências prosseguimos juntos até o início da mixagem. Quando sentamos para mixar algumas músicas o caldo entornou. Nenhuma briga ou grande discussão. Fizemos as cinco primeiras músicas e a participação do Gustavo encerrou-se por ali.
Soube que ele comentara com alguém: “pô, o Colares não aceita nada do que eu falo”. A partir daí, percebi que eu teria que terminar a mixagem sozinho.
Nesse primeiro dia de mixagem, em que o Gustavo ainda estava, eu havia chamado também o Fábio Leopoldino, pra dar uma força. Quando atacamos ‘Junk’, aquele solinho de duas notas que aparece na música no meio e no final, foi um dos pontos de discórdia. Eu queria que aumentasse. O Gustavo achava que ia abafar a bateria.
Eu: Tem que aumentar essa guitarrinha
Gustavo: Mas aí vai abafar a bateria.
Fábio: E daí? A guitarra tem que ficar mais alta.
Gustavo ficou contrariado. Fizemos mais duas músicas e ele nunca mais mexeu no disco.
Gente, eu tinha 23 anos, o Gustavo, 22. Não estávamos propriamente no terreno da maturidade.
Sei que já era maio de 1997, daí a pouco teríamos que mandar a master pra fábrica.
Percebi que teria que dar meus pulos se quisesse terminar tudo em tempo.
Cheguei pro Sol, que também trabalhava no Freezer, e perguntei se não tinha como me emprestar as chaves dele pra eu terminar de mixar o disco. “Você vai mixar sozinho?” “É, vai ser o jeito.”
Já havia tentado combinar com o Gustavo ou com o Dodô. Mas simplesmente não rolava.
Eu já tinha acompanhado a mixagem nas duas fitas do Cigarettes, ‘Felicia’ e ‘Brazil’s Sad Samba”. Ou seja, meu conhecimento era nenhum ou inexistente.
Mas vamos lá! Não tem como ser muito difícil. Equalização, compressão, volume. Beleza! Moleza.
Claro que estava longe de ser simples assim. E eu passei um aperto.
As chaves do Sol me davam acesso às horas mortas do estúdio. Eu tinha que chegar e sair quando não tivesse ninguém por lá.
Aí chegava domingo 11 da noite e saía segunda meio dia.
Eu me guiava pela agenda do estúdio e arriscava. Se aparecesse uma visita surpresa, problema.
O tempo era corrido. Ainda restavam 15 músicas, entre as que ficaram de fora e as que acabaram saindo. Música para UM cacete. E alguém que nunca tinha operado de verdade uma mesa Mackie antes.
O que eu fiz foi colocar a música pra tocar, ir regulando os volumes, equalizar alguma coisa, um efeito ou outro, até que ficasse mais ou menos passável para os meus ouvidos inexperientes naquele tipo de tarefa. Mexia nos botões até que chegasse nesse ponto de passabilidade e pronto. Não havia mais tempo.
Não foi que eu tivesse resolvido: “Sou muito louco e vou mixar esse disco sem ter ideia do que estou fazendo”. Não, eu fui forçado pelas circunstâncias a agir assim.
E foi por isso que a gente achou que seria uma boa ver como ficaria se o disco fosse mixado de verdade.
Ainda bem que eu guardei as fitas.
Certo dia, Dodô e Gustavo descobriram o esquema das chaves do Sol. Só riram. Éramos, somos, amigos.
O charme lo-fi da mixagem original permanecerá pra sempre em nossos corações.